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Nesta época de transição a visão deste pensador é uma excelente reflexão para o nosso trabalho.
Regina Medina
Mudar o mundo é mudar o olhar – Roberto Crema, reitor da Unipaz , em 8 de Outubro de 2012
Para o psicólogo e antropólogo Roberto Crema, ninguém transforma ninguém e ninguém se transforma sozinho; nós nos transformamos no Encontro. Promover encontros transformadores tem sido o objetivo da Universidade da Paz, que ele ajudou a fundar, juntamente com Pierre Weil, há 25 anos. Da experiência no consultório e da vivência na escola surgiu o conteúdo de cerca de 30 livros, que escreveu sozinho ou com parceiros. É uma pequena parte deste vasto conteúdo que ele sintetiza nesta entrevista ao blog Encontro de Ideias, explicando sua visão do mundo contemporâneo, com os desafios e os potenciais que podem transformar nossa humanidade.
Encontro de Ideias – O Sr. considera a crise da sociedade contemporânea como a crise do paradigma da modernidade. Qual é exatamente esse paradigma? Qual foi a contribuição dele à evolução da humanidade e por que ele está em crise?
Roberto Crema: Na minha percepção, a crise global que estamos testemunhando é resultado de um esgotamento paradigmático. O paradigma da modernidade nasceu no século XVII, como uma resposta criativa à mentalidade medieval que, nos momentos mais obscuros, reprimia a ciência em nome de algo que, confusamente, era denominado de Deus. Basta pensar nas fogueiras da Inquisição, onde eram jogados os seres humanos que ousavam pensar diferentemente. Houve, então, um movimento compensatório dialético de resgate da razão crítica e da atitude empírica frente à realidade, através de autênticos gênios como Galileu, Bacon, Descartes e Newton. A sua grande contribuição foi a nossa sofisticada tecnociência que, vale lembrar, necessita de uma orientação. O movimento do Iluminismo fundamentou-se na pretensão de tudo esclarecer e resolver, através de uma razão instrumental exclusiva. Acabamos, então, no equívoco do extremo oposto. No século XIX, a consciência de diferenciação reduziu-se a dissociação e o espírito científico, suportado numa indagação aberta e permanente, degenerou-se em cientificismo. Através do império de uma razão desconectada do coração e de valores éticos, a vivência da subjetividade e do sagrado passou a ser reprimida em nome de algo que, confusamente, é chamado de ciência. Necessitamos de uma nova visão do mundo, que integre o positivo da perspectiva medieval com o positivo da modernidade, através de uma aliança entre o sentimento e o pensamento, entre a intuição e a sensação, entre o método sintético e o analítico.
EI – A ideia de crise de um paradigma faz supor que um novo modelo de pensar está emergindo. Para o Sr., qual é esse novo paradigma? Qual é a sua visão do ser humano nesse contexto, no plano individual e coletivo?
RC: Uma resposta inteligente e ousada surge diante do desafio da crise, através de uma visão que denominamos de transdisciplinar e holística. A transdisciplinaridade, em grandes linhas, representa o diálogo criativo e sinergético entre a ciência, a filosofia, a arte e a tradição espiritual, ou seja, entre a ciência e a consciência. A palavra holística tem a sua origem no grego holos, que significa totalidade, inteireza. Trata-se de um paradigma de integração entre a parte e o todo, entre a razão e o coração, entre o pensamento e o amor, entre a inteligência masculina e a feminina, entre o Ocidente e o Oriente. Há 25 anos tenho sido um operário da Universidade Internacional da Paz – UNIPAZ, que se fundamenta nesta cosmo visão integrativa, a partir de uma ecologia inclusiva e trinitária, que engloba as dimensões do indivíduo, da sociedade e da natureza. Mudar o mundo é mudar o olhar… Em última instância, trata-se do futuro das novas gerações, que se encontra em jogo, no cenário desafiador deste início do terceiro milênio.
EI – Quais seriam, para o Sr., os sinais, globais e no Brasil, de que esse novo paradigma está se estabelecendo?
RC: No Brasil, a própria UNIPAZ é um sinal bastante evidente. Desde 1987 estamos formando uma significativa massa crítica necessária para alavancar um salto quântico de consciência. Milhares de pessoas, das mais diversas regiões e profissões, passaram por nossas formações, despertando para uma nova visão, que concilia o profano e o sagrado, o pessoal e o transpessoal, o universo da quantidade com o da qualidade, a visão de profundidade com a de altitude, o pensar global com o agir local. Trata-se da realização do sonho do nosso primeiro e perene Reitor, Pierre Weil, de uma Escola Superior de Paz. Muito temos semeado e são abundantes os frutos deste bom combate, por uma cultura do diálogo e da não violência. A nossa matriz encontra-se em Brasília e já nos expandimos para cerca de quinze cidades no nosso país; ultrapassamos as fronteiras nacionais, com unidades da UNIPAZ na Argentina, em Portugal, na França e na Bélgica. Estamos em contato com instituições ou organismos mutantes semelhantes, que surgem no mundo todo, para o enfrentamento evolutivo do momento crítico atual, sempre uma ocasião de aprendizagem e de desenvolvimento. O que chamamos de globalização ou de mundialização, um movimento inexorável, necessita avançar da idade da pedra onde se encontra, onde prevalece a competitividade desenfreada, o consumismo compulsivo, a corrupção generalizada e o escândalo da exclusão, para uma idade propriamente humana, da consciência, da responsabilidade, da cooperação e da ética.
EI – A educação é mola-mestra de mudanças, embora frequentemente os sistemas educacionais fiquem a reboque das transformações sociais. Quais seriam as características da educação ideal? O que é a pedagogia do cuidado? E como transformar a educação atual nessa direção?
RC: O que nos diferencia de outras universidades da paz existentes no mundo é que, desde o início, partimos do princípio de que a paz solicita uma nova educação integral, centrada na inteireza humana. Infelizmente, a educação convencional tem se restringido a um processo de adestramento intelectual a serviço do que denominamos de normose, uma patologia da normalidade caracterizada, por um lado, pelo ajustamento a um contexto dominantemente doente e desequilibrado e, por outro, pela estagnação evolutiva. Já Confúcio afirmava a realidade da incompletude humana e que a nobreza é uma função da educação. O que nos diferencia de outras espécies é que não nascemos humanos; nós nos tornamos humanos, por meio de um processo contínuo de investimento em nosso potencial de uma plenitude possível. Além da alfabetização cerebral, necessitamos do que denomino de uma alfabetização da alma e da consciência, as funções talvez mais importantes de uma educação emergente transdisciplinar e holística. A própria UNESCO, desde 1992, através do relatório Delors, nos convoca ao desenvolvimento dos quatro pilares de uma nova educação: educar para conhecer, para fazer, para conviver e para Ser. Urge o exercício de uma pedagogia iniciática, que nos inicie na tarefa prioritária de nos desenvolvermos de forma integral, de modo a fazer render os talentos que a Vida nos confiou, pela atualização da semente vocacional encarnada em cada um de nós. Uma pedagogia do cuidado solicita-nos a tarefa do jardineiro, talvez a metáfora mais justa do bom educador: o mestre capaz de preparar um terreno fértil, com nutrientes e água na medida correta e também uma poda justa, para que a planta possa florescer a partir do tropismo que lhe é inerente, com a sua beleza e fragrância própria. Para isso, importa conciliarmos a ética da diversidade com a da não-separatividade. Esta é uma bela utopia realizável: a do Jardim florido de seres plenamente humanos!
EI – No novo paradigma, qual é o lugar da natureza, em relação ao anterior? Qual seria o conceito de desenvolvimento correspondente a essa relação do homem com a natureza? O Sr. acha que ainda há tempo para a transformação dos modelos de produção frente ao esgotamento dos recursos naturais?
RC: Como diz um poeta, o meio ambiente começa no meio da gente… A ecologia ambiental, sobre a qual tanto se tem falado, apresenta-nos sintomas bastante claros de um desequilíbrio que pode ser fatal para a nossa família humana. Estamos presenciando um processo de extinção em massa das espécies em função, sobretudo, da depredação sistemática da natureza, numa escala frenética e crescente, decorrente de um conceito de progresso a qualquer custo, o que resulta na insustentabilidade de um sistema que caminha, de forma cega, para a demolição, lição do demo, da fragmentação e da desvinculação. O ser humano é natureza e o que fazemos contra o meio ambiente, o ecocídio, é também um genocídio, naturalmente. A metáfora é antiga e ilustrativa: alguém que cerra o galho de uma árvore, precisamente onde ele encontra-se sentado… O aquecimento global, a desertificação, eventos atmosféricos anômalos imprevisíveis, o quase esgotamento deste sangue negro da Terra, que chamamos de petróleo, a escassez crescente da água, entre muitos outros, são meramente sintomas, ou seja, mensagens de advertência que estamos recebendo de uma inteligência telúrica, que pedem a nossa escuta e uma hermenêutica, a arte da interpretação, para que possamos corrigir o que milhares de cientistas, há vinte anos, após um colóquio internacional, resumiram ser a rota de colisão do ser humano com a natureza. Talvez não tenhamos mais tempo para impedir um colapso irreversível, mas sempre podemos nos preparar para extrair do caos um cosmo. Isto me faz lembrar a história interessante de um rabino ancião, que reuniu a sua comunidade e afirmou: “Eu tenho uma boa e uma má notícia. A má é que o teto da sinagoga está para desabar, o que nos custará 50.000 dólares. A boa notícia é que nós temos os recursos para empreendermos a reconstrução.” Alguém, aliviado, indagou-lhe: “E onde estão os recursos, senhor?” O sábio respondeu: “Nos bolsos de vocês!” É o que traduzo afirmando que o teto já está desabando, para quem tem olhos para ver o óbvio. Entretanto, não podemos esquecer-nos que temos os recursos para reconstruir nossa decadente civilização. Estes recursos não estão meramente em nossos bolsos; encontram-se, sobretudo, em nossas almas, em nossos corações, em nossas consciências. O que desaba faz muito ruído, bem sabemos. O que renasce dos desabamentos, entretanto, é delicado e silencioso, como um amanhecer ou o despertar de uma criança…
EI – E quais seriam as condições da ciência nessa nova sociedade? Quais campos ganhariam prioridade em relação ao que se vê atualmente?
RC: Uma ciência aberta ao diálogo com as outras formas de apreender o real, ciente da beleza e magia da douta ignorância, o saber não saber que caracteriza a real sabedoria, consciente da pluralidade dos níveis de realidade, com suas naturezas e lógicas próprias e irredutíveis, o que instaura o universo incontornável da complexidade. Uma ciência que se sabe sempre incompleta, sempre processo, sempre necessitando de outras óticas que instauram éticas, grávida de um inacessível mistério. Uma ciência em sintonia com os novos conceitos do realismo quântico, da não separatividade, da não localidade, da descontinuidade, do indeterminismo, da transcausalidade e da conciliação entre o sujeito e o objeto. Enfim, uma ciência que não se pretenda neutra, comprometida com valores éticos e com o respeito incondicional à vida.
EI – Por fim, o Sr. postula a autotransformação individual para a concretização dessa nova cosmo visão segundo cinco princípios, que seriam metaprincípios. Quais são eles? Como exercê-los?
RC: Trinta e cinco anos de prática terapêutica e educativa me ensinaram que existem cinco metaprincípios, princípios de princípios, envolvidos na arte do desenvolvimento e da plena realização humana. Apenas darei indicações brevíssimas e insuficientes a respeito. O texto completo encontra-se em meu livro, Saúde e Plenitude (Summus, p. 77-124).
O primeiro se refere a uma fonte comum do sofrimento humano, que denomino de metapatologia, uma patologia existente em todas as patologias: o apego, compreendido como identificação – com um desejo, com um objeto, com uma pessoa, com um status, etc. Como tudo se encontra em movimento, num processo permanente de transformação, quando nos identificamos com seja lá o que for, sentiremos medo de não encontrar ou de perder o objeto do nosso apego, o que determina o estresse, que se encontra na origem das reconhecidas doenças provocadas pelo modo de existir. Apego – Medo – Estresse: eis o circuito vicioso de nossas aflições e encrencas existenciais. Como sempre afirmou Pierre Weil, o apego tem uma fonte: a fantasia da separatividade. Na ilusão de que estamos separados da Totalidade, os apego representam um movimento compensatório, ilusórias taboas de salvação, que só poderão ser transcendidos através da Presença ao Instante.
Assim, o segundo metaprincípio, que considero uma metaterapia, um princípio terapêutico inerente a todos os processos terapêuticos é a plena atenção. Já que o desapego é outra forma mais sutil de apego, a tarefa da libertação é a de estarmos atentos ao próprio apego, o que determina certo distanciamento, propício a sua superação. Todo processo de cura e de transformação acontece no aqui-e-agora, que é o lar do Encontro, alquimia da transmutação. Como tenho sempre afirmado, ninguém transforma ninguém e ninguém se transforma sozinho; nós nos transformamos no Encontro, que somente pode ocorrer no Agora. Podemos resumir esta significativa questão afirmando que toda patologia emana da desatenção. Portanto, o processo da mudança terapêutica se vincula, necessariamente, a uma conexão consciente com o Instante, que nos nutre de tudo o que necessitamos, com a condição de que estejamos despertos para o momento presente. Como dizia Pascal, a desgraça do ser humano é a de nunca estar na sua própria casa… Através da plena atenção aos apegos, nos livramos da possessão pela ilusão do passado e pela ficção do futuro. Só podemos nos libertar no milagre do Agora.
O terceiro metaprincípio é o da aceitação que, de modo algum significa passividade ou acomodação. Trata-se de uma qualidade dinâmica de aceitar o que está sendo, para justamente atuarmos como instrumentos de autotransformação e de transformação do mundo. Quando não aceitamos algum aspecto da realidade, seja ela interior ou exterior, nós nos dividimos entre o ideal e o real, o que determina uma luta interna exaustiva, que resulta em dispersão energética imobilizadora, já que necessitamos de energia para alavancar o processo da transformação. Assim, através de um esgotamento energético, a não aceitação nos encerra no círculo patológico da estagnação. Por outro lado, quando somos capazes de aceitação, nos movemos para um círculo virtuoso: o alinhamento com o que é nos possibilita um estado de inteireza, onde não nos fragmentamos entre um mundo ideal e outro real, o que possibilita e disponibiliza um potencial energético, indispensável no processo do devir, do vir a ser.
O quarto metaprincípio é o da vocação, a voz mais profunda e permanente de um desejo essencial encarnado em nós. Falando de outro modo, nós encarnamos para realizar e ofertar uma obra prima individual e intransferível, com os talentos que recebemos, sob medida, da própria Vida. Aprendi no meu consultório que, quando uma pessoa foge da sua trilha com coração, a exemplo do arquétipo do Jonas, do Antigo Testamento, ela atrai tempestades, para si mesma e para as pessoas que a cercam, na forma de sintomas, enfermidades e infortúnios, que podem ser compreendidos como denúncias simbólicas de desvio e de contradição. Como é muito cansativo fugir de nós mesmos, um dia nos lançaremos, também como Jonas, no oceano de nossas promessas. Então, o Mistério passará a conspirar por nós, enviando-nos tudo o que necessitamos para darmos o passo seguinte, na trilha da individuação. Considero a questão vocacional um dos maiores desafios de uma nova educação, que poderá nos levar a transcender uma polaridade de incompetências: a do especialista, aquele que sabe quase tudo de quase nada, e a do generalista, quem sabe quase nada de quase tudo, tarefas que os computadores poderão assumir por nós.
Finalmente, o quinto metaprincípio é o do serviço, o viço do Ser, que expressa a Lei do Amor, a tecnologia mais sofisticada e poderosa de todos os universos. Enfim, a existência talvez seja uma escola onde a primeira e derradeira lição seja a de aprender a amar, com todo o corpo, com toda alma, com toda consciência, com todo o Ser. O que torna uma pessoa realmente rica não é o que ela possui; é a sua capacidade de se contentar e de ofertar daquilo que tem, daquilo que sabe e, sobretudo, daquilo que é. Não há serviço mais excelente do que o que realizamos nos tornando aquilo que realmente somos, por meio de uma vocação conquistada e ofertada. O que a morte nos ensinará é que tudo o que pensamos possuir nos será arrancado de nossas mãos, neste momento derradeiro iniciático… exceto o que tivermos doado, generosa e incondicionalmente! Aqui chegamos e daqui partiremos com as mãos vazias. O único passaporte que levamos é o das nossas doações, lição esquecida de uma sabedoria perene.
Enfim, gosto de confiar que o Ser Humano será a maior descoberta do século XX. Caso contrário, haverá século XXI para o ser humano?…
Sugestão da MST Laura Nessimian, da Loja Perseverança, Rio de Janeiro.